Delação e escola: o caso da Escola Base
“Pode ser que até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?”
Machado de Assis, Conto de Escola.
“Cada ato mesquinho nosso faz retroceder de mil passos qualquer esperança que possa restar quanto ao nosso futuro”.
W. Reich
Revista Espaço Acadêmico – nº. 54 – Novembro/2005 – Mensal – ISSN 1519.6186 – Ano V.
Por Raymundo de Lima.
Psicanalista, professor do DFE da Universidade Estadual de Maringá (PR); doutorando em educação (FEUSP)
Da ficção para a realidade
Na década de 1980, nos EUA, membros de uma família proprietária de uma escola infantil, são acusados de abuso contra uma criança. Além da justiça que joga pesado contra os McMartin, eles sofrem a fúria histérica de sua comunidade. Apoiada nas supostas provas levantadas por uma falsa psicóloga contra os que trabalhavam naquela escola, a promotora manda alguns para cadeia. Inconformado, um advogado vê que se trata de um caso de histeria coletiva insuflado pela imprensa, e, uma década depois, consegue inocentar todos os acusados, mas vidas já tinham sido arruinadas.
Essa história contada no filme “Acusação” (produção de Oliver Stone e direção de Mick Jackon), virou realidade em 1994, na Escola Base, localizada no bairro da Aclimação,
Tudo começou quando “duas mães de alunos dessa escola queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de quatro e cinco anos estavam sendo molestados sexualmente na escola, e talvez, levados numa Kombi para orgias num motel, onde seriam fotografados e filmados”. O delegado “x”, não só acolheu a denúncia como alardeou junto à imprensa antecipando uma condenação dos donos da Escola Base, que só no final do inquérito, dez anos depois – nova coincidência com o caso do filme - foram declarados inocentes.
Tanto na ficção como na realidade, os donos destas escolas sofreram linchamento moral: tiveram que fechar as escolas, os funcionários perderam os empregos, sofreram grave estresse e foram acometidos de doenças como a depressão, fobias, patologias do coração; também receberam inúmeras ameaças por telefonemas anônimos, e isolaram-se da comunidade.
A mídia que espetacularizou a falsa denúncia e, sem nenhuma prova, lançou manchetes reproduzidas como se fosse uma onda espalhada pelo país, terminou estigmatizando os acusados de “monstros da escola”, “escola de horrores”, que a “Kombi era motel na escolinha do sexo”, etc. Um comentarista do extinto programa televisivo Aqui Agora, do SBT, chegou a pedir a pena de morte aos acusados.
Autoposicionada do lado do “bem” e justiça, a imprensa fechou olhos para o linchamento dos acusados, e, mesmo depois de ficar comprovada a inocência dos acusados não veio a público fazer autocrítica e confessar seu erro.
O mesmo acontece na política: comprovada a inocência, não se faz autocrítica da injustiça cometida contra inocentes, uns talvez por vergonha, culpa e medo, outros porque teimam em sustentar uma ‘moral cínica’. O delegado do caso da Escola Base, poderia ter sido conscientizado ao ver o filme “Acusação”; poderia ter se informado sobre os fenômenos psíquicos das “falsas lembranças” produzidas por crianças em conflito, da “histeria coletiva”, do “transe grupal”, ou poderia tomar outra atitude mais racional – mais razoável – que o pudesse levá-lo ao discernimento sobre a denúncia mentirosa sobre os responsáveis pela Escola, mas preferiu tomar como única “prova” o depoimento vago e fantasioso das crianças e das mães.“Ciente da fragilidade das provas que tinha em mãos, [o delegado] agiu com culpa, nas modalidades de imprudência e imperícia”, disse o juiz Paulo Ribeiro na sentença (JB, 11/12/2004).
Falta de prudência e imperícia é comum acontecer em situações de delação ou de denúncia. A massa ou turba manobrada pela notícia espetacularizada geralmente responde com impulsos irracionais e gritos de “pega ladrão”, “joga pedra na Geni”, “mata”, “esfola”, etc. Nos momento de “onda histérica e coletiva”, de “transe grupal”, há que ter alguns céticos de plantão para sustentar um mínimo de dúvida, serenidade, razoabilidade e disposição para demonstrar a verdade. Todo investigador – policial, político de CPI ou cientista – exercem o seu ofício dignamente quando o fazem com razoabilidade, prudência e serenidade.
Conforme alerta Chauí “Na presente circunstância brasileira, a impressão geral deixada pela mídia é da mescla de espetáculo e terror, tornando mais difícil do que já era manifestar idéias e opiniões nela e por meio dela” e, por isso mesmo, induz as pessoas a construírem opiniões levianas em vez de não permitir uma atitude de reflexão e análise serena diante do grave momento (Carta Aberta aos Alunos, Folha de S. Paulo). Todos têm lá suas opiniões (doxa) certas ou erradas, disto ou daquilo, mas poucos se esforçam ou tem o compromisso de buscar o conhecimento (episteme). Raros são os que hoje em dia seguem uma ética da sabedoria.
G. Debord, N. Chomsky, I. Ramonet, o nosso A. Dines, são alguns críticos dessa mídia que se aproveita da liberdade democrática para servir a interesses ocultos, geralmente manipulando as informações e o conhecimento, visando produzir apenas indivíduos dotados de opiniões, não de conhecimento, nem de sabedoria.
Voltando. Embora os acusados da Escola Base, recentemente, ganhassem os processos junto à justiça (inclusive contra o Estado), as indenizações obtidas por danos psicológicos, morais e materiais não conseguirão reverter o que eles perderam de saúde, de dignidade, de imagem pessoal e profissional limpa perante a sociedade. Não conseguirão reaproximar casais, pais e filhos e amigos, todos afastados pela contaminação do veneno da delação e da acusação vazia. (Obs.: com exceção do jornal Diário Popular, fizeram parte da onda acusatória contra os proprietários e funcionários da Escola Base a Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, SBT, TV Globo, Veja, TV Record, Rádio e TV Bandeirantes e IstoÉ. Para pesquisa: acesse na Internet o Google e digite – entre aspas – “escola base”).
O caso da Escola Base passou a ser referência obrigatória de análise e discussão nos cursos sobre Ética do Jornalismo e de Direito, especialmente quanto tratam dos temas “calúnia”, “difamação”,”injúria”, “danos morais”, etc. Seminários e congressos discutem esse caso alertando para a necessária prudência, serenidade e responsabilidade dos profissionais envolvidos em ondas de denúncia e delação. Também a chamada “histeria coletiva”, “transe coletivo”, e as “falsas lembranças” são assuntos pouco estudados nos cursos de Psicologia, Psicopatologia, Psiquiatria, Estudos Sociais, etc. Vale a pena consultar o livro de Alex Ribeiro “O Caso Escola Base - Os Abusos da Imprensa”, publicado pela Editora Ática, em 1995.
Efeitos psíquicos e sociais da delação
O efeito da delação pode ser devastador a nível psicológico, social, moral, político. A vítima da delação, principalmente se for inocente, poderá nunca mais se livrar do sofrimento, da mágoa, às vezes precisará conviver com fobia e pânico e jamais confiará totalmente nas pessoas. A delação tem o poder de sabotar sólidos vínculos de companheirismo e amizades. “A delação produz uma crença clandestina que sapa a confiança das pessoas”, diz o professor de ética da Unicamp, Roberto Romano. No campo político, geralmente a vítima se condena ao auto-isolamento e, dependendo da rigidez superegóica, alguns comentem suicídio como meio ilusório de resgatar a honra. Na Europa e na Ásia, cuja formação moral parece ser mais rigorosa do que nos países latino-americanos, são freqüentes as notícias de suicídios de políticos acusados de corrupção. Em algumas culturas, o suicídio é ainda tido como a única forma de resgate da dignidade perdida na dimensão social. No Japão, as escolas tradicionais incentivam a delação como meio disciplinador dos alunos e professores, além dela ser um importante instrumento de manutenção da rígida hierarquia escolar.
Nesse sistema fechado de regras, qualquer um é “autorizado” para ser delator em nome da tradição moralista, dos valores “certos”, etc. Ser delator é se sentir incluído entre os “dominantes”, mas certamente será odiado entre os “dominados”.
É preciso também considerar que a delação desencadeia um efeito duplo sobre o delator: por um lado, trata-se de um ato que certamente abala a confiança das pessoas tomadas como alvo e por outro, este mesmo ato pode retornar ao próprio delator, causando-lhe danos psicológicos (culpa, remorso) ou sociais (isolamento, rejeição). Não é sem sentido que, na Bíblia, Judas, arrependido de sua traição para com Jesus, se enforca. E, Silvério dos Reis passou para a nossa história como um infame.
Sobrevivido ao ato infame, o delatado jamais esquece o delator. Aqueles que se identificaram com a vítima, também. Nas entrevistas que realizamos por ocasião da pesquisa para doutorado, os entrevistados revelaram que “fulana de tal” ficou marcada pelo meio acadêmico como delatora de um colega aos órgãos de repressão do regime militar pós-64. Seu brilhante currículo como professora, diretora e coordenadora de um projeto inovador de ensino de um importante estado da Federação, não pode evitar em seu currículo a nódoa da delação.
A nódoa imprimida pelo dedo-duro gera medo, precaução e desconfiança por todos, inclusive pelo poder que o acolheu. É verdade que a vítima fica marcada, mas o delator também, por ter fraquejado ou gratuitamente entregado o outro. Haverá sempre a desconfiança de que se ele usou de gesto tão infame uma vez, provavelmente, usará outras.
Alguma coisa está funcionando mal no sistema político quando a nação elege – ou aplaude – delatores e traidores como heróis da pátria e arautos da moralidade. Nessas horas, é preciso, sobretudo, desconfiar dos discursos moralistas de última hora da direita e da extrema-direita. A direita sempre foi moralista no discurso, cafajeste no jogo político e suja na vida privada de seus membros. A esquerda sempre se pautou pela ética, igualdade, justiça, solidariedade, etc., mas nem sempre logrou êxito no seu intento.
É preciso desconfiar das alianças esquizofrênicas dos “princípios” da extrema direita e da extrema esquerda que se unem – tal como representa a faixa de Moebius – visando sabotar os pontos fracos da democracia e tirar proveito da sua crise para enganar o povo com slogans, moralismos e pose de pai autoritário ameaçando o Presidente com uma “surra”. Veja como eles são ridículos quando fazem pose pra galera!
Contra a cultura da delação
Não estamos defendendo a corrupção, nem o caixa 2, nem a ladroagem, mas sim, a atitude prudente e serena nas horas de crise. Em momentos de crise política, a serenidade é melhor do que se deixar levar pelo descontrole das paixões (a política é uma delas), dizia N. Bobbio. Há que se apurar os fatos para em seguida punir os responsáveis, mas não devemos reforçar a “moral cínica” que pretende fundar uma cultura de denúncia ou uma cultura de delação, incentivada pela mídia, premiada pelo aparelho judiciário, e silenciada pelos intelectuais burgueses que se pensam “a favor do proletariado”. (Parafraseando Saramago, os próprios proletários não se vêem como tal; esse termo nada significa para eles, assim como o termo “utopia”).
Pensando numa escola voltada para a sabedoria – e não apenas voltada para preparar os alunos para o Vestibular, ou dando-lhes conhecimento teórico ou um mínimo de técnica para servir ao mercado – teríamos alunos e cidadãos mais céticos, isto é, melhor preparados para resistir e questionar aquelas aulas cheias de opiniões, slogans, palavras de ordem, pregações, enfim, um discurso que, no fundo, serve apenas para formar cidadãos que trocam uma fé por outra. Aulas abstratas, supostamente críticas, podem ter resultados piores do que aulas supostamente alienadas, porque podem ter o poder despertar no aluno apenas ódio em vez da atitude prudente de pesquisador.
Uma universidade sustentada na verdadeira atitude crítica deveria estar ancorada na dúvida metódica, que, além de ser uma atitude necessária para se fazer ciência deveria também fornecer um estilo de ser plural, porque é preciso primeiramente compreender antes de discutir e debater muito antes de condenar.
Bibliografia consultada
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FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
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SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios. A ciência vista como vela no escuro. São Paulo: C. Letras, 1996.
SILVEIRA, A. Grandes julgamentos da história. S. Paulo: Cultrix, 1969.
VIGNOLES, P. A perversidade. Campinas: 1991.
Entenda o caso da Escola Base
Publicada em 13/11/2006 às 12h11m
O Globo Online
SÃO PAULO - Em março de 1994, vários órgãos da imprensa publicaram uma série reportagens sobre seis pessoas que estariam envolvidas no abuso sexual de crianças, todas alunas da Escola Base, localizada no bairro da Aclimação, na capital. Os seis acusados eram os donos da escola Ichshiro Shimada e Maria Aparecida Shimada; os funcionários deles, Maurício e Paula Monteiro de Alvarenga; além de um casal de pais, Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França.
De acordo com as denúncias apresentadas pelos pais, Maurício Alvarenga, que trabalhava como perueiro da escola, levava as crianças, no período de aula, para a casa de Nunes e Mara, onde os abusos eram cometidos e filmados. O delegado Edelcio Lemos, sem verificar a veracidade das denúncias e com base em laudos preliminares, divulgou as informações à imprensa.
A divulgação do caso levou à depredação e saque da escola. Os donos da escola chegaram a ser presos. No entanto, o inquérito policial foi arquivado por falta de provas. Não havia qualquer indício de que a denúncia tivesse fundamento.
Com o arquivamento do inquérito, os donos e funcionários da escola acusados de abusos deram início à batalha jurídica por indenizações. Além da empresa 'Folha da Manhã', outros órgãos de imprensa também foram condenados, além do governo do estado de São Paulo. Outros processos de indenização ainda devem ser julgados.
A última aula da Escola Base
Cobrança de indenização milionária pode forçar a imprensa
a pagar por seus erros num assassinato social
Os sinos dobraram de novo pela Escola Base. Na primeira quinzena de dezembro, o caso voltou ao noticiário quando o juiz Paulo Aliende Ribeiro, da 5ª Vara da Fazenda Pública, condenou o governo do Estado de São Paulo a pagar uma indenização de cem salários mínimos a dois donos da escola, Icushiro Shimada e sua mulher Maria Aparecida, e um colaborador, Maurício de Alvarenga. A indenização cobre apenas os danos morais, devendo ser feita uma perícia para avaliar os prejuízos materiais das vítimas. O advogado Kalil Abdalla disse que vai recorrer e insistir em cobrar do Estado uma indenização de R$ 2,8 milhões para cada um.
Essa é a parte do Estado. Como fica o erro da imprensa? “Eu acho que a imprensa tem a sua parcela de culpa”, disse Shimada no programa Opinião Nacional da TV Cultura de São Paulo em 12/12. No entanto, seu advogado não quer briga com os meios de comunicação. Mas a advogada Maria Elisa Munhol, que representa o casal Saulo e Mara Nunes, outros denunciados no episódio, já está processando as TVs Globo e SBT e os jornais Folha de S.Paulo, Folha da Tarde e Notícias Populares. Ela quer que esses meios de comunicação paguem R$ 3,2 milhões a cada um dos seus clientes (JB, 11/12).
Não há notícia, no Brasil, de uma indenização tão alta por danos morais ou materiais. Os juízes preferem arbitrar valores simbólicos que demarcam mas não desestimulam a repetição do erro. “Nos Estados Unidos custa caro indenizar por falsa acusação”, tripudiou a revista Veja ao noticiar (18/12) a indenização paga em acordo extrajudicial pela rede de televisão NBC ao guarda de segurança Richard Jewell, acusado por muitos jornais, rádios e Tvs americanos de ter armado a bomba que explodiu no estádio do Centenário durante a Olimpíada de Atlanta. Jewell foi citado como suspeito pelo FBI e a mídia o tratou como culpado — algumas vezes em longas reportagens onde nem a expressão “segundo fontes do FBI” foi usada como aval da calúnia (O New York Times omitiu de Jewell). O ex-guarda de segurança ameaça processar cada um deles, a menos que, como se antecipou a NBC, façam acordos de indenização. A quantia não foi revelada, mas, como no Brasil quem não sabe inventa, Veja inventou: “... é coisa pra lá de milhão.”
No país da impunidade, o caso Escola Base é um dos mais eloqüentes da crônica policial desde que Pedro Álvares Cabral largou aqui criminosos degredados de Portugal. Em 28 de março de 1994, duas mães de alunos, Lúcia Eiko Tanoi e Cléa Parente, queixaram-se na delegacia do bairro do Cambuci de que seus filhos de quatro e cinco anos estavam sendo molestados sexualmente na escola e talvez levados numa Kombi para orgias num motel, onde seriam fotografados e filmados. O delegado Edélcio Lemos e a maior parte da mídia encamparam a denúncia como fato provado, mas ao final do inquérito os acusados foram declarados inocentes. Eles sofreram um assassinato social: perderam os empregos, a paz e isolaram-se da comunidade.
Registre-se que a denúncia das mães
era notícia de primeira página
O pecado original foi da polícia, mas é cristalino que a mídia espetacularizou a denúncia e a seguir assumiu as acusações como verdade provada e fechou os olhos para o linchamento dos acusados. Registre-se que a denúncia das mães era notícia de primeira página. Qualquer pai com filho na escola, em qualquer escola, possivelmente sentiu um frio na espinha ao saber da suspeita de pornografia com crianças. Mas era só notícia, não linchamento.
Já nos primeiros dias da cobertura deveria ter sido aceso o sinal amarelo diante do desequilíbrio do delegado Edélcio Lemos. Ele assegurava, com convicção de vidente, a culpa dos acusados. Não parecia um investigador, mas uma testemunha ocular. Sua única “prova”, além do depoimento tatibitate das crianças, devidamente pajeadas pelas mães, era um telex do Instituto Médico Legal sugerindo violação sexual de um menino. Mais tarde, o laudo do IML foi dúbio e incapaz de se contrapor à evidência de que o garoto sofria de assaduras crônicas. “Ciente da fragilidade das provas que tinha em mãos, agiu [o delegado] com culpa, nas modalidades de imprudência e imperícia”, disse o juiz Paulo Ribeiro na sentença (JB, 11/12).
Prudência e perícia se afastaram também do noticiário. “Perua escolar carregava crianças para orgia”, estampou a Folha da Tarde. Notícias Populares, um pasquim indigno da liberdade de imprensa, afirmava: “Kombi era motel na escolinha do sexo”. A orgia das invencionices alterava os hormônios da imprensa de elite. “Escola de horrores”, sentenciou a revista Veja. A cobertura escrachada não preservou ninguém, nem mesmo as crianças, reconhecíveis pela identificação dos pais e atazanadas em noticiários da TV. Em pleno jornal do meio-dia, emissoras pediam a um menino de quatro anos que contasse detalhes escabrosos do suposto molestamento sexual. “A tia passou a mão em você?”, sugeria a repórter da Globo à criança inocente que brincava com o microfone. A TV Cultura educava seus telespectadores com um jornalismo espúrio, conforme o diálogo do repórter com um garotinho, reproduzido pelo jornalista Alex Ribeiro no livro Caso Escola Base - Os abusos da imprensa:
“— Esta mulher, ela deitava em cima de você?
—Deitava.
—O que ela fazia, o que ela queria?
Diante da relutância do garoto, o jornalista sugeriu a resposta: — Te beijar a boca?
O garoto respondeu com um aceno de cabeça...”
Os erros da polícia e da mídia na Escola Base nada tiveram de originais. Apenas reiteraram a versão reforçada de uma sucessão de disparates profissionais, truculência, prepotência, desrespeito aos direitos humanos a que estão acostumados a polícia e a imprensa. E tome autocrítica: nunca a imprensa se penitenciou tanto de um erro, mas o fez genericamente.
Se um erro grave foi cometido numa reportagem, deve ser feita uma reportagem grave sobre o erro. Ninguém fez isso
A autocrítica no jornalismo só é aceitável com jornalismo: cabe ao meio de comunicação reconhecer que errou (mentiu? inventou?) ao noticiar determinada fantasia ou barbaridade. Se um erro grave foi cometido numa reportagem, deve ser feita uma reportagem grave sobre o erro. Ninguém fez isso. A autocrítica genérica, ao debitar a trapalhada na costa larga “da imprensa”, serve para que tudo continue como sempre foi: erra-se e pede-se desculpa para ter direito a outro erro.
A principal causa da tragédia foi o barbarismo policial e a conivência da mídia com esse barbarismo. Uma é o espelho canibal da outra. A polícia não investiga, condena e divulga. A imprensa divulga, condena e não investiga. Ao final, as vítimas se amontoam na próprio infortúnio, a polícia nunca é responsabilizada e a imprensa se defende com a alegação invariável que apenas publicou o que lhe disseram.
Desde o número 1 deste boletim, lançado em março de
Boletim 12, Novembro-Dezembro de 1996
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"Monstros" da Escola Base Elaborado em 03.2000. |
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Marcos Antonio Cardoso de Souza advogado em Teresina (PI), pós-graduado |
| Propõe-se, no presente artigo, mais do que uma simples análise do "caso Escola Base", uma reflexão sobre as implicações e ensinamentos, que devem ser assimilados por parte da imprensa nacional, em face do incidente Há de se fazer, a princípio, ressalvas à condução do inquérito policial. Não se pode presumir a autoria de um crime, ou a sua prática. Faz-se estritamente necessário apresentar os indícios e as provas, os quais conduzem às conclusões sobre o caso. O inquérito policial tem absoluto caráter de investigação, não de condenação. A Constituição Federal, diploma máximo do ordenamento jurídico, preceitua que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória" (art. 5º, LVII). Assim, somente com a manifestação do Judiciário, da qual não caiba mais qualquer recurso, o indivíduo poderá ser considerado como autor de um crime. Os direitos dos indiciados sofreram nítidas lesões. Quanto às acusações que recaíram sobre os proprietários da Escola Base, não se demonstrava prudente propagar, muito menos a nível nacional, afirmações dos pais de alunos; as quais, no momento, não apresentavam qualquer respaldo probatório. Até mesmo porque, no processo criminal, quando subsistem dúvidas acerca da titularidade do delito, ou sobre a prática da conduta típica, torna-se imperativa a absolvição do réu. Com o término do inquérito policial do "caso Escola Base", evidenciou-se a insuficiência de instrumentos a comprovar as alegações quanto à prática de crime sexual. Assim, o porteiro da instituição de ensino, Maurício Alvarenga e os proprietários da mesma, Icushiro Shimada e Aparecida Shimara, através de advogado em comum, acionaram o delegado responsável pelo caso e o Estado de São Paulo. Defendeu-se tese de que o delegado era responsável pelo massacre imposto ao seus clientes (Revista Imprensa, nº 145, pg. 30). Como resultado do processo, Edélcio Lemos, a autoridade policial, foi condenado ao pagamento de indenizações para os autores da demanda. Em razão de o Estado de São Paulo possuir o dever de zelar pela prestação dos serviços públicos (responsabilidade objetiva dos entes estatais), condenado-se também, o mesmo, ao pagamento de R$100.000,00 para cada um dos acima citados, como forma de ressarcir os danos morais e materiais verificados. Cumpre frisar que nem todos os meios de comunicação veicularam as denúncias sobre as supostas moléstias aos impúberes da escola. Isto revela que alguns setores da imprensa já adquiriram consciência de sua influência na sociedade e as conseqüências do poder do qual se reveste a mídia. Não se pretende afirmar com essas assertivas que os veículos divulgadores do caso em questão são irresponsáveis, ou desprovidos de qualquer ética profissional. Incontestável, porém, o equívoco cometido pelos mesmos, fato este que deve servir como alerta, no sentido de se proceder com maior cautela, no momento de se selecionar, não só as notícias a serem divulgadas, como também a abordagem a ser conferida uma questão controversa. As prerrogativas constitucionais e legais, consagradas aos particulares, são de observância imperativa. Intenta-se focalizar o presente texto no comportamento da mídia. Diante de uma situação não comprovada, promoveu a execração pública das pessoas envolvidas. O efeito imediato da publicação da matéria em análise consistiu no saque e depredação do prédio da escola. Dificilmente, alguém que acompanhasse a cobertura da imprensa restaria imune ao desejo de adotar alguma medida contrária aos pretensos culpados. A sociedade, com base nas informações difundidas na imprensa, julgou-os antes da devida apreciação do caso pelo Judiciário. As seqüelas emocionais nos acusados, com certeza, são insanáveis. Constata-se serem os mesmos as verdadeiras vítimas de toda esta celeuma propagada nos veículos de comunicação de todo o País. A Lei Máxima assegura que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". Utilizando-se desta garantia legal, a advogada do casal Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França, suspeitos de participação nas orgias e abusos sexuais envolvendo crianças, propôs ação em razão da conduta da Rede Globo de Televisão e da Folha da Manhã, quanto ao caso. Dessa forma, encontra-se na esfera dos órgãos jurisprudenciais a exposição difamatória imposta aos acusados, a fim de que os verdadeiros culpados respondam, nos termos da legislação da legislação pátria vigente, pelos danos causados aos "Monstros da Escola Base". |
Definida indenização para os donos da Escola Base
Extraído de: Expresso da Notícia - 19 de Novembro de 2002
Duzentos e cinqüenta mil reais. Essa é a quantia que a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou para cada um dos proprietários da Escola de Educação Infantil Base, depredada pela população e fechada após a divulgação pela imprensa da falsa acusação de que crianças lá matriculadas eram alvo de abusos sexuais. A decisão foi por maioria. A Turma derrubou, ainda, a limitação em R$ 10 mil determinada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) como valor que a Fazenda estadual possa ser ressarcida do que for pago a Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada e Maurício Monteiro de Alvarenga.
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O julgamento estava interrompido pelo pedido de vista do ministro Franciulli Netto, após a relatora, ministra Eliana Calmon, votar condenando o delegado Edélcio Lemos a ressarcir os cofres públicos daquilo que for pago de indenização aos proprietários da Escola. Para ela, não foi a veiculação do assunto pela imprensa e sim a conduta "irresponsável" do delegado, mediante "acusações levianas", que levou os proprietários a serem repudiados e quase linchados pela população, perdendo não só a honra, mas o estabelecimento de ensino. Nesse ponto, a decisão do STJ foi unânime.
A ação de indenização se deu porque em 29 de março de 1994 o delegado que conduzia as investigações deu entrevista à Rede Globo de Televisão afirmando "com todas as letras" que houvera violência sexual contra os estudantes da Escola. Para Eliana Calmon, a segurança transmitida pelo delegado, ao narrar com suas próprias palavras o que apurava, deu à imprensa o respaldo necessário à divulgação. Somente no dia seguinte os demais jornais divulgaram o fato, baseados nas palavras do delegado, que afirmou estar provada a materialidade do crime de violência sexual, faltando apurar apenas a autoria, muito embora tivesse dito que pediria a prisão preventiva dos autores, nos termos da prova documental.
Na primeira instância do Judiciário paulista, a indenização por danos morais fixada foi de 100 salários mínimos para cada um dos ofendidos. Na apelação, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) condenou a Fazenda de São Paulo a indenizar os donos e diretores da Escola Base em R$ 100 mil por dano moral para cada um dos autores, com juros e correção monetária, desde o início do processo, e determinou que o valor a ser pago por danos materiais seja calculado na fase da execução da sentença, mediante perícia, que incluirá lucros cessantes e os prejuízos com a destruição da escola, que funcionava em prédio alugado. O TJ decidiu, também, que o delegado Edélcio Lemos, que presidiu o inquérito policial, pague indenização limitada por danos morais e materiais a R$ 10 mil, com juros e correção monetária.
Tanto a Fazenda de São Paulo como os proprietários da escola recorreram ao STJ discutindo o valor da indenização. Ao recurso da Fazenda estadual, a Segunda Turma do STJ deu parcial provimento, afastando o limite de R$ 10 mil para que o delegado devolva aos cofres públicos o que for pago de indenização.
Quanto à alegação de Icushiro Shimada, Maria Aparecida Shimada e Maurício Monteiro de Alvarenga de que "o valor determinado como dano moral foi simbólico" e defendendo a necessidade de reformar a decisão do TJ, tendo em vista que a questão teve grande repercussão, nacional e internacional, e que "resultou em verdadeiro linchamento moral, que por pouco não se transformou em verdadeiro e real", a Turma ficou dividida. Eliana Calmon manteve a decisão do TJ, mesmo entendendo que o que eles sofreram é irrecuperável. Franciulli Netto, contudo, concluiu que "a quantia proposta (de R$ 100 mil) não é idônea a trazer qualquer alegria aos autores capaz de fazê-los superar o evento lastimável, que não apenas abalou, mas destruiu sua reputação e seu equilíbrio emocional".
Em seu voto-vista, Franciulli Netto descreveu as conseqüências a cada um dos acusados injustamente de abuso sexual a crianças e destacou que não há ninguém neste país que, contemporâneo aos fatos, não se lembre do verdadeiro linchamento moral e abusos a que foram submetidos os autores, que tiveram suaescola fechada, depredada, e jamais poderão exercer atividade semelhante. "É certo que o dano moral não pode significar um enriquecimento do credor. Menos não é verdade, contudo, que, como registrou o próprio Tribunal de origem, não deve a indenização por danos morais ser meramente simbólica, mas efetiva e proporcional à condição da vítima, do autor do dano e da gravidade do caso", afirmou, propondo o valor de R$ 250 mil.
O fato de, eventualmente, o servidor que causou o dano -o delegado Edélcio Lemos -não ter condições de arcar com o valor integral da indenização pouco importa para a solução da polêmica, acredita o ministro, pois em casos em que se faz presente a responsabilidade do Estado, a indenização deverá ser calculada combase na sua capacidade e não na do agente público causador do dano.
Os ministros Laurita Vaz e Paulo Medina acompanharam o entendimento de Franciulli Netto. Apenas Peçanha Martins seguiu o voto da ministra Eliana Calmon. Assim, por três votos a dois, a Fazenda de São Paulo terá que indenizar cada um dos proprietários da Escola Base em R$ 250 mil, ao invés dos R$ 100 mil determinados pelo tribunal paulista.

